quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

A Jornada de um escravo fugitivo - livro

 

"Se alguma coisa na minha experiência, mais do que as outras, serviu para aprofundar minha convicção do caráter infernal da escravidão e para me encher de ódio indescritível pelos senhores de escravos, foi a ingratidão que tiveram para com a minha pobre e velha avó. Ela servira fielmente ao meu antigo senhor desde a juventude até a velhice. Tinha sido a fonte de toda a sua riqueza; povoara sua plantação com escravos e se tornara bisavó a seu serviço. Ela o tinha ninado quando bebê, o assistira na infância, o servira durante toda a vida e, na morte lhe fechou os olhos para sempre. No entanto, permaneceu escrava - uma escrava vitalícia - uma escrava nas mãos de estranhos. E, nas mãos deles, viu seus filhos, netos e bisnetos divididos, como um rebanho de ovelhas, sem serem gratificados com o pequeno privilégio de uma única palavra quanto ao seu próprio destino. E, para completar o clímax da ingratidão e da barbárie diabólica, minha avó, agora muito velha, tendo sobrevivido a meu antigo senhor e a todos os seus filhos, tendo visto o começo e o fim de todos eles, e seus atuais donos descobrindo que ela era de pouco valor, que seu corpo já era atormentado pelas dores da velhice e o desamparo completo rapidamente lhe roubava os membros outrora ativos, eles a levaram para a floresta, construíram uma pequena cabana, colocaram uma chaminé de barro e então a apresentaram ao privilégio de se sustentar ali em perfeita solidão; portanto, deixando-a para morrer! Se minha pobre e velha avó agora vive, vive sofrendo em total solidão; vive para lembrar e lamentar a perda de filhos, netos e bisnetos. Eles estão, na linguagem do poeta dos escravos, Whittier:

"Desaparecidos, desaparecidos, vendidos e desaparecidos

No pântano de arroz solitário e úmido,

Onde o chicote incessantemente oscila,

Onde o inseto barulhento sibila,

Onde o demônio da febre espalha

Veneno com o orvalho que se empilha,

Onde brilham os raios do sol doente

Através do ar enevoado e quente:

Desaparecidos, desaparecidos, vendidos e desaparecidos

No pântano de arroz solitário e úmido,

Da Virgínia, colinas e águas,

Ai de mim, minhas filhas roubadas!"

O lar está desolado. As crianças, as crianças inconscientes, que antes cantavam e dançavam em sua presença, se foram. Ela procura, na escuridão da idade, um gole de água. Em vez das vozes de seus filhos, ouve de dia os gemidos da pomba e de noite os gritos da hedionda coruja. Tudo é sombrio. O túmulo está à porta. E agora, quando sobrecarregada pelas dores e aflições da velhice, quando a cabeça se inclina em direção aos pés, quando o início e o fim da existência humana se encontram, e a infância  indefesa e a dolorosa velhice se combinam - neste momento, neste mais necessário momento, o tempo para o exercício dessa ternura e afeição que as crianças só podem exercitar em relação a um pai ou mãe decadente -, minha pobre avó idosa, mãe dedicada de doze filhos, fica sozinha naquela cabana, diante de algumas brasas escuras. Ela se levanta, senta-se, cambaleia, cai, geme, morre - e não há nenhum filho ou neto presente para limpar da testa enrugada o suor frio da morte ou para cobrir de terra os restos caídos." 

(Trecho do livro "A jornada de um escravo fugitivo" - De Frederick Douglass)

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